domingo, 14 de agosto de 2011

Abrigos para menores pedem socorro (MP)


Relatório da Vigilância Sanitária e do Corpo de Bombeiros, feito a pedido do Ministério Público, atesta situação de precariedade dos centros estaduais de internação para adolescentes. Resultado é reincidência criminal de 90%
* Promotor da Infância e Juventude, Alexandre Vieira, responsável por solicitar o relatório afirma que seria preciso investir R$ 500 mil para resolver problemas mais urgentes. “Como estão, estes centros não recuperam ninguém”, diz
Carolina Rofre
Da Editoria de Cidades
Na semana em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 20 anos, o Diário da Manhã esteve nos três centros de internação para adolescentes em conflito com a lei em Goiânia e constatou uma realidade cruel: mais do que não recuperar o menor infrator – dados do Juizado da Infância e Juventude de Goiânia apontam índice de reincidência superior a 90% –, o atual sistema socioeducativo em Goiás é parte do ciclo de violência em que esses adolescentes, a maioria pobres, estão inseridos.
O Centro de Internação Provisória (CIP), o Centro de Internação do Adolescente (CIA) e o Centro de Atendimento Sócio Educativo (Case) apresentam problemas graves. Endossa a constatação relatório produzido em março deste ano pela Vigilância Sanitária Municipal e pelo Corpo de Bombeiros do Estado de Goiás, a pedido do Ministério Público Estadual.
O documento revela diversas irregularidades que têm colocado em risco a vida dos adolescentes. Até mesmo medicamentos vencidos foram encontrados no CIA. Além disso, entre outros problemas relacionados a estes centros, destacam-se: a infraestutura precária, a falta de profissionais, capacitação e recursos financeiros e o déficit de vagas. Se a medida socioeducativa de internação está falida, a liberdade assistida praticamente inexiste em Goiás. A gravidade da situação é negligenciada pelo Estado há anos.
No limite
Com uma estrutura igual a dos presídios para adultos, os centros de internação para adolescentes possuem problemas semelhantes aos do sistema prisional e mais alguns. O Ministério Público constatou que a falta de recursos é geral e estes centros funcionam na base do improviso. Exemplo disso é que cada unidade possui apenas um carro para realizar todos os serviços necessários.
Instalados de forma provisória dentro de batalhões da Polícia Militar, o CIA e o CIP são os que apresentam mais problemas. Os espaços são insalubres, inseguros e sem condições básicas de higiene. Como não foram planejados para a internação, mas apenas adaptados de forma improvisada para atender a necessidades urgentes, estes centros desrespeitam princípios de moradia imprescindíveis à dignidade da pessoa humana.
Os prédios do CIA e do CIP são demasiado velhos e nunca passaram por uma reforma geral. Mantidos à custa de pequenos remendos, muitas vezes realizados por meio de parcerias, sem verba do estado, esses locais são escuros, abafados e estão tomados por vazamentos e infiltrações.
Além de inadequados e cheios de irregularidades, os espaços são insuficientes. No CIP, que está no 7º Batalhão desde 1999, a situação é pior. Lá, 20 adolescentes utilizam uma área de cerca de 30 m2 para as atividades de lazer, e o banho de sol é em um espaço ainda menor. Os alojamentos – que mais se parecem com celas de presídio – são pequenos para a quantidade de adolescentes que neles dormem, cerca de cinco. O único alojamento que possui luz artificial é o feminino, mas até quarta-feira passada a lâmpada estava queimada.
Segundo a coordenadora do CIP, Denise Carneiro Guerra, a falta de lâmpadas nos alojamentos e também de chuveiros nos banheiros são medidas de segurança para evitar que os adolescentes utilizem esses objetos como armas. A coordenadora afirma que faltam profissionais não apenas para realizar esse controle, mas para todas as demais atividades no centro. O déficit é grande. O CIP precisa do dobro do número de profissionais que tem atualmente. “Trabalhamos no limite”, diz.
O Ministério Público constatou que alguns problemas são simples e fáceis de resolver, como os extintores de incêndio que estão sendo utilizados fora da data de validade e dispostos em locais inapropriados, mesmo problema verificado com botijões de gás, e a inexistência de saídas de emergência nos prédios.
Aberto em março de 2006, o Case é o único centro de internação construído especificamente para atender os menores infratores. Com uma área ampla, bem iluminado e ventilado, o local é o que mais se aproxima do ideal preconizado pelo ECA e das recomendações do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. No entanto, ali os problemas também são gritantes. O prédio nunca passou por uma reforma geral e está cheio de infiltrações, a quadra de esportes não foi concluída, e o número de profissionais é insuficiente, o que compromete o funcionamento e a segurança do local.
Promotor de Justiça da Infância e Juventude de Goiânia, Alexandre Mendes Vieira, responsável por solicitar o relatório, acredita que seria preciso investir, inicialmente, R$ 500 mil para resolver os problemas mais urgentes. “Como estão, estes centros não recuperam ninguém”, afirma. Ele aponta a disposição de mais recursos para manutenção, a construção de outros centros e a melhoria da qualificação profissional como medidas prioritárias. “Se esses adolescentes não forem tratados com dignidade, eles nunca saberão o que é isso”, diz.

Sem vagas, punição limita-se a advertência
Além dos problemas constatados, os centros de internação ainda possuem um enorme déficit de vagas. Em Goiânia, atualmente, 90 adolescentes estão internados no CIP, CIA e Case. Este ano, a medida socioeducativa de internação representou menos de 2% das aplicadas aos jovens infratores na Capital. Em 2009 não chegou a 6%. Segundo Alexandre Vieira, a falta de estrutura adequada e o déficit de vagas impossibilita que mais adolescentes sejam encaminhados para estes locais, por isso, muitos menores infratores acabam recebendo apenas uma advertência. Essa medida representa quase 75% das aplicadas este ano em Goiânia.
O déficit de vagas em todo o Estado também faz com que muitos adolescentes sejam encaminhados a cadeias e presídios para adultos. Somente em Goiânia, estima-se que haja cerca de 50 adolescentes nesses locais, o que vai de encontro ao que prevê o ECA. Para evitar tal situação, o judiciário tem optado por encaminhar os menores presos nesses locais para centros de internação longe de suas famílias, o que também contraria o ECA.
Atualmente, o Estado de Goiás possui nove unidades de internação que atendem cerca de 250 adolescentes. Além de Goiânia, existem centros para menores infratores em Anápolis, Luziânia, Itumbiara, Formosa e Jataí. O único centro de semiliberdade no Estado fica em Anápolis e, atualmente, atende apenas quatro adolescentes, apesar de ter 15 vagas disponíveis. A unidade que recebia os jovens da região de Porangatu está desativada por falta de segurança. Considerado o pior do Estado, o centro de internação de Rio Verde foi interditado no início deste ano, porque o prédio, muito velho e deteriorado, também não oferecia segurança.
De acordo com a Secretaria de Cidadania e Trabalho do Estado de Goiás, órgão responsável pelos centros de internação para menores infratores, a unidade de Porangatu estará funcionando em no máximo 40 dias. Sobre a unidade de Rio Verde, o orgão afirma que será construído um novo centro de internação no município, mas não soube precisar quando ele estará concluído.
Existem ainda projetos para a construção de centros de internação em São Luís de Montes Belos, Ipameri, Itaberaí e uma outra unidade em Anápolis. Sobre os centros em Goiânia a Secretaria diz que pretende transferir o CIP e o CIA para a área onde funciona o Case, no Conjunto Vera Cruz, mas também não há previsão de quando isso será realizado.
O promotor da Infância e Juventude de Goiânia teme as consequências dessa medida, já que o local não oferece segurança suficiente. “Dentro dos batalhões, rodeado por policiais, já temos problemas de segurança, imagina fora desses ambientes.” O receio se estende à falta de uma data precisa para concluir essas obras. Ele lembra que o centro de internação de Formosa demorou 14 anos para ser construído e que o Case demorou mais de dez. Diante dos inúmeros problemas constatados no sistema socioeducativo em Goiás, o promotor aponta a única forma de solução: cumprir a lei. Ele ressalta que a constituição de 1988 prevê que a criança e o adolescente devem ser prioridades absolutas. Para reforçar isso, os legisladores ainda criaram o ECA.
No entanto, diz, “as crianças e os adolescentes são prioridades apenas nos discursos dos políticos em ano de eleição. Na prática, os governantes preferem construir parques caríssimos do que cuidar bem desses menores”. Para ele, o grande índice de reincidência dos jovens infratores tem dois culpados: a Justiça e o Estado, que não oferecem oportunidades para esse jovem se recuperar. “Falta vontade para resolver o problema”, afirma.

Faltam recursos humanos
Grande parte dos profissionais que atuam nos centros de internação em Goiânia tem problemas de saúde devido ao ambiente de trabalho inadequado. Mal remunerados e sem nenhum tipo de gratificação, a maioria ainda apresenta problemas psicológicos e precisa de tratamento por causa do clima de tensão a que são submetidos constantemente. Muito desses profissionais continuam a desempenhar suas funções porque acreditam na importância social de seu trabalho.
O quadro de funcionários é composto por comissionados, concursados e contratados e existe uma desproporção enorme entre os salários. Tanto que existem enfermeiras nesses centros que não ganham mais do que um salário minimo, enquanto outras ganham bem mais do que isso. Em 2006, o governo do Estado chegou a publicar no Diário Oficial decreto orçamentário em que instituía uma gratificação para esses profissionais, mas até hoje eles ainda não receberam nenhuma parcela do benefício.
Ao longo dos anos o número de profissionais diminuiu consideravelmente. Hoje, os que permanecem nas unidades se desdobram para atender as necessidades dos locais, exercendo, muitas vezes, atividades diversas de sua função. Devido à falta de profissionais, um único psiquiatra atende os internos dos três centros, sendo os atendimentos marcados de 15 em 15 dias.
Diante dos problemas alarmantes de recursos humanos, a Secretaria de Cidadania e Trabalho do Estado de Goiás realizou recentemente concurso para o sistema socioeducativo, mas ainda não há previsão de quando os aprovados serão contratados. A falta de preparo e capacitação específica dos profissionais que trabalham nesses centros é outro problema. Na ocasião do último processo seletivo, o Ministério Público propôs que os candidatos realizassem um curso de caráter eliminatório, mas a Secretaria não atendeu o pedido.
não assistida
A liberdade assistida é a segunda medida socioeducativa mais aplicada em Goiânia, com índice de quase 12%. Atualmente, cerca de 500 adolescentes deveriam estar em liberdade assistida em Goiânia. Indicada para menores que cometeram infrações leves e médias, como furtos, ou para aqueles que conseguiram progressão da internação, essa medida permite que o menor fique em liberdade e conviva com a família e com o restante da sociedade, mas sendo acompanhado por um educador.
No papel, 177 municípios goianos já implementaram a medida socioeducativa de liberdade assistida, mas, na prática, ainda falta muito para que ela seja realizada no Estado. Responsabilidade do governo municipal, sob a coordenação do governo estadual, a liberdade assistida carece de uma estrutura mínima para funcionar. Entre outras coisas, faltam profissionais, carros e telefones para acompanhar os adolescentes.
Coordenador do CIA, João Luís Corrêa Batista afirma que depois que saem da internação muitos meninos continuam a ligar para os funcionários da unidade para pedir ajuda, porque eles não têm ninguém lá fora. “Nós somos parte de um processo, se não houver acompanhamento da família e do Estado, o problema não será resolvido”.
Para o promotor da Infância e Juventude, Alexandre Vieira, é preciso acabar com o paternalismo que ronda o sistema socioeducativo. “Não é passando a mão na cabeça desses jovens que a situação irá melhorar. Precisamos ser racionais, objetivos. O sistema tem que funcionar”

Internos têm expectativa de mudar de vida
O sorriso é espontâneo, aberto, verdadeiro e tem um motivo: G., 17, espera que o juiz lhe conceda a liberdade na audiência marcada para a próxima quarta-feira. Nada é certo, mas o garoto acredita que logo verá o céu por inteiro novamente. Uma ideia errada, um impulso, uma ação repentina levaram G. e um colega a apedrejar um outro garoto depois de uma discussão. A vontade não era de matar, mas de descarregar a raiva e se mostrar digno. No entanto, a inconsequência, tão própria dos adolescentes, desta vez, não pôde ser perdoada: um garoto havia morrido.
Internado há um ano em uma das unidades para menores infratores em Goiânia, G. ainda passou por uma cadeia para adultos e por outro centro de internação, antes de chegar aonde está. “Os outros foram bem piores”, diz. Segundo o coordenador da unidade, por medida de segurança, G. só pode falar acompanhado por um educador. Mesmo assim, ele se sente livre para falar que faltam mais atividades no centro e que os internos passam muito tempo presos nos alojamentos, onde o calor é quase insuportável. Como mais da metade dos adolescentes do sistema socioeducativo em Goiânia, G. é pardo, pobre, estudou até a 8ª série, mora apenas com a mãe e está próximo de atingir a maioridade. Depois de pagar por seu erro, ele acha que está na hora de recomeçar.
Quer mudar de cidade, estudar e, no futuro, se casar e ser juiz de direito. Mas o desejo de sair e de viver não o impedem de ter medo. Apesar de se sentir mais controlado e paciente, ele não sabe como será a vida lá fora e como vai reagir diante das surpresas que o aguardam. G. precisa de apoio, de alguém que o ajude a se manter em equilíbrio e a seguir o seu caminho. Como o sorriso, a insegurança tem motivo. Ele sabe que só poderá contar com a mãe lá fora.
Já C., 17, não contará nem com a mãe depois que sair do centro de internação em Goiânia, aonde está há um mês. Antes de ir para lá, C. passou sede e teve medo do escuro, quando foi detido numa cadeia para adultos no interior do Estado, onde não tinha água nem energia elétrica. A internação foi aplicada depois que C. tentou assaltar um supermercado pela segunda vez.
Na cabeça do garoto, ainda se pode ver a cicatriz que a mãe fez ao bater no filho com um pedaço de pau. Agressão que o deixou seis meses em coma. Depois, ela ainda enfiou um espeto de ferro na coluna dele, antes de abandoná-lo. A revolta, a vontade de esquecer e a busca por novas sensações levou C. a se enveredar pelo crime. Hoje, ele reza todo dia para sair logo do centro de internação. Mesmo acreditando que não tem mais chance de realizar seu sonho de ir para o Exército, ele diz que quer seguir sua vida, pagar o que roubou, recuperar a namorada e viver tranquilo.

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